A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E SUAS ASSIMETRIAS EM RELAÇÃO AOS EUA DURANTE O PRIMEIRO MANDATO DE LULA

06/02/2021

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SÃO LUÍS - No decorrer do século XX, a política externa brasileira modificou-se de forma a abarcar, com considerável centralidade, o modelo bilateral de negociações, subdividindo-se contemporaneamente, segundo Pecequilo (2008), em três etapas: alinhamento (1990-1998), autonomia (1999-2004) e diálogo estratégico (2005-2008), essa última inaugurada com a visita do ex-presidente estadunidense George W. Bush ao Brasil, em abril de 2005. Dessa forma, cada etapa, iniciando-se a partir do fim da Guerra Fria, representa determinadas alterações de conduta externa por parte do Brasil e dos Estados Unidos da América (EUA), tendo em vista modificações de política doméstica e do contexto geral da atuação internacional e latino-americana (PECEQUILO, 2008).

Hirst (2011), por sua vez, subdivide, sob ótica brasileira, a relação bilateral entre Brasil e Estados Unidos em espaços temporais e denominações distintas, porém evidenciando, igualmente, um amadurecimento da política externa brasileira frente ao Estado hegemônico. A primeira etapa, caracterizada por uma aliança informal (ou "não escrita"), iniciou-se concomitantemente com o golpe republicano de 1889 e perpetuou-se até o início dos anos 1940. A segunda, por sua vez, definida pelo alinhamento automático aos Estados Unidos, desenvolve- se entre 1942 e 1977. A terceira fase, que destaca-se pela autonomia do Brasil frente aos EUA, mantém-se até o início dos anos 1990, quando dá origem à subsequente etapa de ajustes, em que houve uma conduta mais flexível, por parte do Brasil, diante das expectativas estadunidenses no campo socioeconômico, diplomático e de segurança internacional. A quinta, e última, etapa, por sua vez, inaugura-se a partir do primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), do Partido dos Trabalhadores (PT), e caracteriza-se pela conduta altiva e pragmática brasileira, delimitando as concessões e pretensões do Estado, tanto em relação aos Estados Unidos, quanto a outras nações relevantes no Sistema Internacional (HIRST, 2011). Essa nova fase da política externa tupiniquim representa-se, principalmente, pelo aprofundamento da integração regional, pela retomada do multilateralismo tradicional brasileiro, pela criticidade em relação às assimetrias entre os Estados, pela busca de parcerias estratégicas com nações semelhantes ao redor do mundo, reaproximando-se de países subdesenvolvidos, e pela manutenção do relacionamento com as potenciais globais (SILVA; SPOHR, 2015).

Desse modo, entende-se que a política externa do Partido dos Trabalhadores, refletida através do primeiro mandato de Lula, foi formulada para fazer parte de uma espécie de "projeto nacional", que, segundo Almeida (2007, p. 3), "representaria uma espécie de alavanca fundamental do processo de desenvolvimento, que deveria ser marcado pela integração soberana na economia internacional e pela mudança nas 'relações de força' do mundo atual" - traduzindo-se em termos como "reforço do multilateralismo", em oposição ao unilateralismo, e "mudança na geografia comercial mundial", explicitando o desejo brasileiro de forjar uma aliança entre países em desenvolvimento (ALMEIDA, 2007). Além disso, explicitam-se dois princípios na política externa do governo Lula, os quais traduzem-se nas duas grandes diretrizes do primeiro mandato: a "presença soberana no mundo" e a "forte integração continental" - caracterizados, segundo Almeida (2007), por serem, ao mesmo tempo, ambiciosos e contraditórios entre si.

Durante seu discurso de posse, em 2003, o então presidente Lula afirmou que buscaria, junto aos EUA, uma parceria madura, objetivando alcançar interesses mútuos entre os países, e descartando, pelo menos oralmente, políticas subservientes (BANDEIRA, 2005). Tais manifestações despertaram a desconfiança estadunidense, temendo a ascensão do "antiamericanismo" em mais um Estado latino-americano (PECEQUILO, 2008), visto que o contexto da época denotava tensões entre a Venezuela chavista e os Estados Unidos de Bush, frente às intervenções hegemônicas deste sobre aquele. No entanto, a alteração de diretrizes foi, na verdade, a construção de uma percepção mais realista do que representava o papel estadunidense para o Brasil, encarando-o de forma pragmática, na qual reconhecia-se seu papel de liderança, mas também entendia-se a possibilidade do pressionamento por parte de outros polos e na própria economia (PECEQUILO, 2008). De acordo com Vizentini, reiterado por Pecequilo (2008, p. 98),

[...] ao reforçar o eixo Sul-Sul, o Brasil reforçou o eixo Norte-Sul, tornando-se menos vulnerável e maximizando as perspectivas do intercâmbio bilateral. Como a China e a Índia, o Brasil passou a ser visto como uma nação com poder de negociação e peso regional, elemento de equilíbrio na América do Sul, complementar aos interesses político-estratégicos norte-americanos. Nesta região, o projeto da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) e os contatos extra-continentais reforçaram os projetos anteriores, evoluindo até a União de Nações Sul-Americanas (Unasul).

Dessa forma, explicitando-se a etapa de diálogo estratégico, apesar de ambos os países considerarem-se parceiros táticos relevantes, não renunciaram seus interesses particulares (PECEQUILO, 2008), fazendo com que o Brasil se desvencilhasse gradualmente da influência dos EUA (HIRST, 2011) e, consequentemente, amenizasse a centralidade da relação com os Estados Unidos na diplomacia brasileira desse período (MILANI, 2011).

Naturalmente, em reação à política externa brasileira, evidenciaram-se alguns atritos entre os dois países, porém, entende-se que a subsequente "contenda entre o Brasil e os Estados Unidos decorreu, não de uma posição ideológica do governo de Lula da Silva, mas da contradição entre os interesses reais dos dois países" (BANDEIRA, 2005, p. 121). Logo, sumarizando o aspecto abordado, Milani (2011, p. 80) afirma que:

Na prática comercial, o Brasil se confrontou com resistências que produziram inúmeros focos de atrito  entre  os  dois  governos  -  a   integração  das 


Américas, a presença da Venezuela e da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba) na América do Sul, o papel do Estado no modelo brasileiro de desenvolvimento econômico etc. A postura de negligência da administração Bush em relação à América do Sul - salvo quanto à Colômbia - contribuiu amplamente para o ajuste das relações entre o Brasil e os Estados Unidos, doravante estimadas importantes, mas não essenciais.

Nesse sentido, em relação às desavenças diplomáticas entre o Brasil e os Estados Unidos, destacam-se quatro tópicos principais, alguns dos quais consubstanciam-se entre si: a questão do urânio enriquecido, a Guerra ao Iraque (2003 - 2011), a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Em relação ao primeiro tópico, evidencia-se a reação negativa dos EUA em relação às aspirações do Brasil de produzir urânio enriquecido em território doméstico (MILANI, 2011). Na época (2003), o Estado brasileiro "estava a converter-se no sétimo país a produzir urânio enriquecido, em escala industrial, com capacidade para suprir 60% das necessidades de suas usinas nucleares, e exportar até US$ 12,5 milhões ao ano, a partir de 2014" (BANDEIRA, 2005, p. 123), no entanto, no ano seguinte (2004), os Estados Unidos intensificaram as pressões para que o Brasil assinasse um Protocolo Adicional específico, adjunto do acordo de salvaguardas do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), no qual condia-se aos inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) maior autoridade para realizar inspeções invasivas no programa nuclear brasileiro, além de exigir que o Estado brasileiro

[...] suspendesse todos os programas de enriquecimento ou de reprocessamento, que já houvesse começado, e permitisse tantas inspeções quanto fossem arbitradas, não apenas nas instalações nucleares, mas em qualquer parte do território considerada suspeita - o que incluía residências particulares, se assim fosse decidido, respondendo a qualquer pergunta relacionada com a questão. [...] os países que até então não produziam urânio enriquecido não estariam autorizados a fazê-lo. Apenas o Brasil, entretanto, seria afetado e prejudicado com a adesão ao Protocolo Adicional, porquanto era, entre os signatários do TNP, o único país com uma indústria nuclear capaz de produzir urânio enriquecido (BANDEIRA, 2005, p. 123).

A Guerra ao Iraque, por sua vez, traduziu-se em atrito devido à posição crítica de Lula ao conflito. Em entrevista, o ex-presidente brasileiro afirmou que o então presidente George W. Bush "desrespeita a ONU, não leva em conta o Conselho de Segurança e o que pensa o restante do mundo. Acho que isso é grave. Grave para o futuro da ONU, que é uma referência de comportamento para as nações do mundo inteiro" (FREIRE apud BANDEIRA, 2015, p. 115). Além disso, declarou que, apesar de a ausência de armas de destruição em massa no território do Iraque ser interesse global, isso não dá direito aos Estados Unidos de decidirem, sozinhos, o que é bom ou ruim para a humanidade (FREIRE, 2003).

A ALCA também foi objeto de dissidências, uma vez que os interesses domésticos refletiram-se na política externa brasileira, "em contradição com as pretensões imperiais dos Estados Unidos, exacerbadas na administração de George W. Bush" (BANDEIRA, 2005, p. 116). Ainda enquanto candidato, em 2002, Lula já havia declarado que a ALCA não tratava-se de uma proposta de integração, mas de uma política de anexação, acrescentando que o Brasil não seria anexado. No entanto, enquanto presidente, por conveniência política, a fim de preservar o relacionamento entre os dois países, não afastou-se das negociações. Apesar dessa preservação, durante os diálogos, a administração do presidente petista confrontou acordos prejudiciais ao Brasil, além de não aceitar uma redução tarifária (BANDEIRA, 2005). Como forma de contestação, o então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, sugeriu a criação de uma "ALCA possível", que pudesse conciliar os objetivos dos 34 países que participavam das negociações (BANDEIRA, 2005). Posteriormente, afirmou em entrevista que não aceitariam modelos prontos, afirmando que tudo deveria ser negociado e, em não conformidade, disse que o que ocorria antes era uma falsa negociação, em que os tópicos eram postergados e a questão dos subsídios, principal barreira, não era discutida pelos Estados Unidos (BANDEIRA, 2005).

De forma quase concomitante, em mais uma demonstração de resistência às políticas imperiais estadunidenses, houve embate durante negociações referentes à Organização Mundial do Comércio (OMC), no México, caracterizando-se, segundo Pecequilo (2008), como a maior desavença recente entre os dois países, à sua época. Na ocasião (2003), durante a 5a Conferência Ministerial da OMC, o Brasil foi responsável por coordenar a formação de um bloco comercial agrícola, liderando, dentro da organização, os Estados emergentes (Índia, China, México, África do Sul, Indonésia etc.) que se opunham ao prosseguimento da agenda, uma vez que só os interesses das potências industriais eram atendidos, mesmo que, na época, o bloco representasse mais de 55% da população mundial e quase 69% da produção agrícola global (BANDEIRA, 2005). Tal coligação, longe de tentar hostilizar a nação estadunidense, objetivava impedir que potências centrais industrializadas, como EUA e União Europeia (UE), impusessem seus interesses aos demais países periféricos (BANDEIRA, 2005).

Finalmente, no mesmo âmbito, em 2004, o Brasil moveu uma ação contra os EUA, através do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC. O movimento jurídico deu-se devido aos altos índices de subsídio do algodão dos Estados Unidos, resultando, mesmo após apelação estadunidense, na vitória do Estado brasileiro sobre o norte-americano, forçando o congresso dos EUA a alterar suas taxas de ajuda aos agricultores do país (HIRST, 2011; ALBRES; NETO, 2012).


UFSCMUN, Universidade Federal de Santa Catarina, CSE - Trindade, Florianópolis/SC - 88040-380
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