ÍNDIA, PAQUISTÃO, E O MUNDO NUCLEAR DO QUAL NUNCA SAÍMOS

15/04/2022

TEMPO DE LEITURA: 18 MIN.

FLORIANÓPOLIS - Em meio a um cenário internacional já conturbado, na sexta-feira, dia 11 de março de 2022, entre as notícias da guerra da Rússia contra Ucrânia, noticiou-se algo aterrorizante e incomum. A Índia teria enviado um míssil contra o território do Paquistão, país com que já compartilha um histórico conflituoso, dois dias antes, em 9 de março. Para melhor definir a relação entre os dois países, podem-se utilizar as palavras de Bertonha (2002, p.1), na qual define que os problemas fronteiriços são "praticamente uma constante desde que os dois Estados foram constituídos a partir da dissolução da Índia britânica nos anos 40". No entanto, para o trazer certo alívio, se é que é possível fazê-lo, esse disparo teria sido apenas um acidente, e não há relatos de feridos (REUTERS [...], 2022; POR [...], 2022).

 Essa frase pode soar como uma grande piada de mal gosto quando se leva em consideração que os dois países não só têm uma relação conturbada como também são ambos detentores de arsenal nuclear. Junta-se a isso a agitação causada pela insinuação russa de que o país utilizaria armas nucleares se fosse considerado necessário, e consegue-se entender o porquê do apocalipse ter sido um tema tão comum na cultura pop durante a Guerra Fria¹. Para os mais leigos da política internacional, parece que o mundo mudou repentinamente. Mas ele já é assim há muito tempo, e este é o tema deste artigo.

De volta à Índia e ao Paquistão, para se ter um contexto, contam entre suas desavenças a questão da Caxemira. De acordo com Neves Jr. (2020), os dois países já lutaram quatro guerras relacionadas à região, e a situação de tensão teria recrudescido em 2019 e os padrões de relacionamento teriam sido modificados com a chegada ao poder do partido nacionalista-religioso hindu Bharatiya Janata (BJP, do inglês - Bharatiya Janata Party) e a ascensão do atual primeiro ministro-indiano Narendra Modi, somadas à modernização militar desenvolvida desde 1999, quando ocorreu a última guerra entre os dois países. Ainda de acordo com o autor:

Além de ações militares em território paquistanês, como os chamados "ataques cirúrgicos, o governo do BJP promoveu importantes alterações legais na condição especial do Estado de Jammu e Caxemira. Após as eleições de maio de 2019, o governo do BJP decretou a suspensão dos artigos 370 e 25A da Construição Indiana, que garantiam substantiva margem de autonomia para o Estado de Jammu e Caxemira. De acordo com os textos, agora invalidados, a região poderia ter um chefe de governo e Constituição próprios, e os cidadãos gozavam de particularidades legais, como o direito exclusivo de adquirir propriedades imobiliárias. (NEVES JR. , 2020, p. 152)

Bertolucci (2021) é outro autor que concorda com esse ponto de vista do aumento da tensão da região com a ascensão do BJP: 

A eleição de Narendra Modi na Índia serviu para intensificar tal situação, na medida em que o partido de Modi, o Barataya Janata Party (BJP) é um partido nacionalista hindu, adotando um discurso fundamentalista nas questões religiosas para angariar apoio para a agenda do governo.(BERTOLUCCI, 2021, p.17)

Então, quando se considera que ambos os países possuem armas nucleares, a conta fica ainda mais complexa. Cerca de 20 anos atrás, apesar da tensão, o roteiro era diferente, como apontava Bertonha (2002, p. 1):

Numa primeira apreciação, as crises entre Índia e Paquistão seguem um roteiro quase invariável: algum elemento detonador (atentados terroristas, guerrilha na Caxemira, etc.), troca de acusações, ameaças e de alguns rounds de artilharia, pânico mundial, recuo e simulacro de negociações até outra crise surgir. Aparentemente, nenhum dos dois lados leva a sério o risco de ataques nucleares, tanto que não se tomam medidas preventivas, como a retirada da população de centros urbanos ou a construção de abrigos.(BERTONHA, 2002, p. 1)

Após um pouco de conflito militar, vinha a pacificação e retornava-se ao status-quo (NEVES JR., 2014 apud NEVES JR., 2020). Ainda assim, mesmo naquela época, o autor Bertonha (2002) enxergava ali algo de diferente, que na visão dele não permitia um equilíbrio à la Guerra Fria entre os dois, e tornava um pouco mais plausível uma guerra nuclear apesar da insensatez de sua realização: o ódio profundo entre as partes. Isso, antes mesmo da piora na relação entre esses vizinhos do sul da Ásia.


¹ Para ler sobre o ocorrido, pode-se conferir, por exemplo: GALVANI, Giovanna. Rússia poderia usar armas nucleares se "provocada" pela Otan, diz oficial russo. CNN, São Paulo, 24 abr. 2022, 11:58. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/russia-poderia-usar-armas-nucleares-se-provocada-pela-otan-diz-oficial-russo/. Acesso em: 12 abr. 2022.

² O tratado, seu status e signatários podem ser encontrados aqui: TREATY on the Non-Proliferation of Nuclear Weapons. UNODA, [s. l.], c2021. Disponível em: https://treaties.unoda.org/t/npt. Acesso em:13 abr. 2022.

³ Os países são: China, República Popular Democrática da Coreia,Egito, Índia, Irã, Israel, Paquistão e Estados Unidos da América. O status e signatários do tratado podem ser encontrados aqui: STATUS of signature and ratification. CTBTO, [s. l.], c2012. Disponível em: https://www.ctbto.org/the-treaty/status-of-signature-and-ratification/. Acesso em:13 abr. 2022.

Sobre o tratado: COMPREHENSIVE Nuclear-Test-Ban Treaty (CTBT). UN, [s. l.], [20--?]. Disponível em: https://www.un.org/disarmament/wmd/nuclear/ctbt/. Acesso em: 13 abr. 2022.

⁴ O tratado, seu status e signatários podem ser encontrados aqui: TREATY on the Prohibition of Nuclear Weapons. UNODA, [s. l.], c2021. Disponível em: https://treaties.unoda.org/t/tpnw. Acesso em:13 abr. 2022. 

⁵ No texto original: If the CD was a business, it would have gone bankrupt years ago. Its consistent track record of failure would have sidelined any other organization, but the CD appears to enjoy unfathomable support by its member states and even has an outstanding request since 1982 for membership by 27 states, despite the fact that the CD has not been able to agree on this issue either. This abysmal state of affairs has been criticized on many occasions (MEYER, 2021, p.292)


Já em 2021, a situação se alterou. Ambos aquiesceram com um cessar-fogo, retomando aquele que foi assinado em 2003, mas que estava desgastado (GHOSHAL, 2021). Bertolucci (2021, p.18) destaca que isso é : "resultado dos custos militares, os custos frente à pandemia e pressões internacionais, especialmente após os conflitos fronteiriços entre Índia e China, que arriscavam colocar Nova Délhi em duas frentes." Então, imagina-se o clima quando notícias de um míssil acidental da Índia atingir o Paquistão foram divulgadas.

Ademais, o fato da situação ser explicada por uma falha técnica, somente divulgada oficialmente dois dias após o ocorrido, merece também destaque. Coincidentemente, também ainda no ano de 2002, o autor Bertonha (2002, p.3) apontava que ambos os lados tinham "uma deficiência crônica em termos de sistemas de comunicação e controle, satélites de reconhecimento e outros instrumentos para prevenir uma guerra por acidente ou por falta de controle das armas". Era uma tragédia anunciada. 

Para completar o contexto do ocorrido, nenhum dos dois países sequer chegou a fazer parte do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP)², de 1968, e até hoje nenhum dos dois ratificou o Comprehensive Nuclear-Test-Ban Treaty (Tratado de Interdição Completa de Ensaios Nucleares ou CTBT), que só pode entrar em vigor com a ratificação por parte de todos os países necessários, incluindo Índia e Paquistão na lista dos que ainda não o fizeram³. Não só isso, mas também nenhum dos dois países também aderiu ao Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPAN) ou Treaty on the Prohibition of Nuclear Weapons (TPNW).⁴

Contudo, observando o sistema internacional como um todo, Índia e Paquistão não são os únicos países a apresentarem certo risco nuclear ou a não ratificar os mecanismos de regulação mais recentes e completos. Coreia do Norte e Israel, por exemplo, ambos países que possuem armas nucleares, também não fazem parte do TNP, apesar do primeiro ter feito parte do tratado até deixá-lo em 2003. Os próprios Estados Unidos, assim como a China, também não ratificaram até agora o CTBT. Ou seja, os acontecimentos recentes apenas são reflexos de um histórico de obstáculos variados para garantir a verdadeira segurança mundial à população civil do uso indevido de tecnologia nucleares.

Enquanto isso, a Conferência da ONU, responsável por se atentar a este desafio, passa por tribulações. Nesse caso, trata-se da Conferência sobre Desarmamento (Conference on Disarmament ou CD), que tem entre seus focos o desarmamento nuclear, a prevenção da corrida armamentista e a prevenção da guerra nuclear (CONFERENCE ON DISARMAMENT, [20--?]). Como colocado por Meyer (2021), se por um lado, nos primeiros anos de criação da CD da ONU ela era uma ferramenta produtiva, ela não produziu nenhum novo acordo desde a negociação do CTBT, que teve seu rascunho final em 1996, e é chocante que os Estados participantes aceitem essa situação.

Entre os problemas que acarretam essas inabilidade de gerar resultados, Meyer (2021) indica a aplicação extrema do princípio de decisão por consenso, que força a necessidade de unanimidade, a falta de transparência que permite aos países fuga das consequências, a rotatividade frequente da presidência com a necessidade de confirmação dos mandatos a cada dois anos, prioridades diferentes de cada país quando se tratam das principais questões tratadas e a organização dos países dentro da CD em grupos que refletem ainda a Guerra Fria, entre outros. Isso não significa que a CD não seja criticada, ele explica:

Se a CD fosse um negócio, teria falido anos atrás. Seu consistente histórico de fracasso teria colocado de lado qualquer organização, mas a CD aparenta gozar de apoio incomensurável de seus estados membros e até mesmo tem um pedido pendente desde 1982 para adesão de 27 estados, apesar do fato de que a CD não conseguiu concordar quanto a esse assunto também. Esta situação abismal foi criticada em muitas ocasiões.(MEYER, 2021, p.292, tradução nossa)⁵

Todos esses fatores corroboram para que se conclua que, apesar de que não pareça, nem tanto mudou desde a Guerra Fria. As armas nucleares ainda existem, e aqueles com maior acesso a elas não necessariamente colaboram com o longo processo de desarmamento e regulação que vem sendo colocado em prática desde o século passado. Índia e Paquistão são apenas dois, entre vários casos, nos quais os olhos internacionais devem se fixar.


LUÍSA HELENA DA SILVEIRA

UFSCMUN, Universidade Federal de Santa Catarina, CSE - Trindade, Florianópolis/SC - 88040-380
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