SOBERANIA AO NORTE DO PARALELO 38

31/03/2022

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FLORIANÓPOLIS - O final de 2021 marcou o primeiro ciclo de 10 anos de Kim Jong Un como líder do Partido dos Trabalhadores da República Popular Democrática da Coréia (RPDC). Sendo o representante oficial de um Estado criado há menos de 80 anos, já detém o papel de ajudar a construir estratégias e táticas de um país tratado como pária no cenário internacional do Ocidente. A conferência do respectivo partido que ocorreu no dia 27 de dezembro serve justamente para isso, ao passo de que o vizinho do Sul, juntamente com a potência mais expressiva em termos bélicos no mundo atual, se reúne para atualizar o plano de guerra contra o Norte, nomeado Global Posture Review, no caso de serem observadas agressões militares chinesas ou ameaças da RPDC. Cabe o questionamento do porquê um Estado menor que o Paraná e com pouco mais que o dobro da população da cidade de São Paulo é capaz de provocar a comunhão de tantos esforços (LIEBERMANN, 2021) (CNBC, 2021).

Formada em 1948, como reação à proclamação da República da Coréia, ao Sul, a RPDC tem vivido sua história numa busca por soberania. Foram mais de 3 décadas de uma violenta ocupação japonesa e uma guerra de 3 anos que resultou em mais de 2,5 milhões de mortos, combatida com apoio da China e URSS, contra Coréia do Sul e a invasão legitimada pela ONU, encabeçada pelos Estados Unidos que, entre o uso de napalm (bomba incendiária de espessante e combustível) e ameaças nucleares, lançaram sobre o Norte uma quantia de explosivos superior aos utilizados contra o Japão na Segunda Guerra Mundial. A RPDC iniciou, a partir disso, a construção de uma linha de ação ideológica e política que a permitisse impedir novas agressões externas, e defender sua população caso elas ocorressem (MARTINEZ; MARTINS, 2016) (VISENTINI; PEREIRA; MELCHIONNA, 2017) (MILLET, 2021).

Tal iniciativa da RPDC se entrelaça fortemente com duas filosofias nacionais, Juche e Songun. A primeira foi desenvolvida por seu primeiro presidente, Kim Il Sung, que preconizava a construção do socialismo de maneira autárquica, incluindo uma independência política, econômica, militar e ideológica, possibilitando uma integridade nacional e excluindo um cenário no qual o Estado se tornasse uma mera peça no jogo diplomático das potências que o rodeiam. (LEE, 2003). Songun, por outro lado, surgiu na década de 1990 e coloca o exército em posição central dentro da dinâmica política da sociedade, já em uma época na qual a construção de armamentos nucleares estava claramente entre as ambições da RPDC e ela até mesmo já havia ingressado em esferas como a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), em 1974 e 1985. (VISENTINI; PEREIRA; MELCHIONNA, 2017).

De acordo com Carr (2001, p. 185), a autarquia não é "apenas uma necessidade social, mas ainda um instrumento de poder político. É, primeiramente, uma forma de estar preparado para a guerra", e parece que é exatamente isso o que a RPDC tem em mente, desde 1950, tendo em vista a continuidade da permanência das tropas estadunidenses na Coréia do Sul e a política belicista norte-americana que se expressava em episódios como o da Guerra do Vietnã. Também Hamilton, o primeiro secretário do tesouro dos EUA, compartilha de ideias que se assemelham a essa linha de pensamento, quando afirma que uma nação deve suprir suas necessidades de subsistência com frutos do próprio solo e suas próprias indústrias, fornecendo-se as matérias primas e produtos que com elas se adquirem (HAMILTON, 1966). No entanto, os rumos da história demonstram que para a RPDC ainda permanece o desafio de conciliar a defesa de sua soberania com o crescimento econômico de sua nação.

A partir do momento em que o desenvolvimento de tecnologia nuclear na Península Coreana ficava mais explícito, as movimentações diplomáticas dos EUA começavam a tomar forma. Em 1993, após a AIEA confirmar o processamento de plutônio acima do que havia sido informado dentro da RPDC, os norte-americanos clamaram ao Conselho de Segurança da ONU a imposição de sanções. O caminho escolhido, ao fim, foi o Acordo Quadro assinado pelo presidente Clinton, no qual "a RPDC aceitava a interrupção imediata de seu programa nuclear, o desmantelamento de suas instalações nucleares até 2003, a sua permanência no TNP e as inspeções da AIEA", enquanto

os EUA comprometiam-se a auxiliar a Coreia do Norte na construção de dois reatores de água leve, até 2003, com capacidade de gerar aproximadamente 2 mil megawatts de energia - e de fornecer, anualmente, 500 mil toneladas de petróleo pesado como recurso energético alternativo até que o primeiro reator estivesse ativado (VISENTINI; PEREIRA; MELCHIONNA, p. 94, 2017).


Contudo, para os EUA este não era um acordo de fato vinculativo, e embora a RPDC estivesse cumprindo a parte que lhe cabia, não havia quase nenhuma contrapartida das promessas de Clinton. Logo, a alternativa que restou foi a reativação das instalações de pesquisa nuclear em Yongbyon, e em 1998 foi lançado o míssil Taepodong-1 (KIM, 2010).

 Com a chegada de George W. Bush à presidência, a RPDC é oficialmente incluída entre os países do "Eixo do Mal", os EUA realizam uma intervenção armada no Iraque e a administração lista em seu Nuclear Posture Review a China e a RPDC como possíveis alvos de suas armas nucleares. Esse início de século foi marcado por tentativas de Kim Jong Il, então representante da RPDC, de instaurar um acordo de paz com a grande potência, informando uma série de condições para a destruição de seu programa nuclear. No entanto, como ocorrera com o Acordo Quadro, "pode-se dizer que Pyongyang foi muito mais longe na processo de incapacitação [bélica] que no primeiro impasse nuclear entre EUA-RPDC, apenas para receber muito menos em troca" (KIM, 2010, p. 79, tradução nossa).

Esse tipo de dialética perdura até os dias atuais, quando o desarmamento nuclear total parece ser pré-condição para as negociações com os EUA. A diferença é que a partir de 2006 inicia-se uma variedade de sanções aplicadas pelo Conselho de Segurança (CS) contra a RPDC, sendo no total 9 até 2017 (DAVENPORT, 2018). Sobre isso, vale lembrar a afirmação de Carr (2001, p. 171), de que um bloqueio econômico "pode causar tanto sofrimento quanto uma série de ataques aéreos. Mas, em termos gerais, em certo sentido os dólares são mais humanitários do que as balas, mesmo quando o objetivo é o mesmo". As sanções recaem sobre as importações de tecnologia e materiais militares, petróleo, bens de luxo, mas também sobre as exportações de produtos têxteis, carvão, frutos do mar, minério de ferro, entre outras mercadorias que compõem a base da economia da RPDC, culminando em um efeito direto sobre a população (FRANK, 2018).

Tais medidas certamente impactaram de forma negativa o desenvolvimento de uma economia que sofreu um grave declínio com o fim da URSS e do seu apoio econômico, e que se aprofundou ainda mais com as secas e enchentes que atingiram a RPDC em meados de 1990, resultando em uma fome generalizada que vitimou centenas de milhares de pessoas. A consequência de todo esse cenário foi uma dependência econômica crescente sobre a China, e mais tarde, a criação de laços com países que não eram rígidos adeptos das sanções, como Síria, Irã, Egito, Arábia Saudita, Argélia e Líbano (HAGGAR; NOLAND, 2010).

Também, se avaliarmos a continuidade do desenvolvimento de tecnologia nuclear na RPDC, que segue até os testes de lançamento de mísseis realizados em setembro de 2021, vemos que as sanções não foram efetivas para barrar a militarização do Estado, e nem ao menos o comércio com a China. Apenas serviram para isolá-lo economicamente, e vale lembrar que há ainda indícios de violações de tais resoluções do CS por no mínimo 49 países (LIEBERMANN, 2021) (NOLAND, 2019). Enquanto isso, a economia da RPDC é impedida de se fortalecer de maneira natural, algo que dificulta inclusive ajuda humanitária, fazendo com que, por exemplo, pacientes de câncer corram o risco de de não ter acesso a quimioterapia devido aos efeitos diretos e indiretos das sanções, como informado por Tomas Ojea Quintana, relator de direitos humanos da ONU (PARK, 2017).

Nessa dinâmica de tentativas de negociação e disputas de poder, tanto bélico e econômico quanto da opinião internacional, vê-se que é pouco provável que ocorra um desarmamento unilateral, como demonstram querer os EUA, até mesmo porque, como observa Wight (2002), isso requere a satisfação com status quo vigente do equilíbrio de poder, isso inclusive nos casos de desarmamentos multilaterais. Além disso, as contínuas ameaças e imposições de dificuldades econômicas sobre a RPDC, bem como a própria história e posição geográfica, impedem que o Estado sinta-se seguro no contexto atual, ainda mais se não puder manter o instrumento de barganha e dissuasão que são seus armamentos nucleares.

Em 2009, durante o governo de Barack Obama, uma iniciativa militar que reunia EUA, Japão e Coréia do Sul levou 50 mil homens até a península, além de navios, submarinos e aeronaves de vigilância, para encenar um conflito contra a RPDC (KIM, 2010). Dez anos mais tarde, as tentativas de formação de acordos entre Kim Jong Un e Donald Trump, assim como as anteriores, caíram no dilema de quanto cada lado teria de abrir mão para efetivar a normalização das relações entre os países (CBNC, 2021). E então em 2021, a sequência dos lançamentos de mísseis, a contínua ameaça norte-americana no planejamento de mais uma encenação de guerra e a manutenção de seu viés de ação internacional reforça o desejo Juche de avançar com a política até o momento adotada para garantir a soberania nacional e a construção do socialismo coreano.

Independentemente dos caminhos pelos quais seguirá a geopolítica do nordeste asiático, cabe uma reflexão constante acerca das dinâmicas de poder vigentes e da linha histórica dos principais agentes das relações internacionais lá presentes, levando em conta suas ações e interesses. Ao que demonstra a literatura sobre o tema, os objetivos da RPDC não parecem ser tão distintos de nenhum outro Estado cuja lógica, numa constante circunstância de ameaças, é a de buscar meios concretos de defesa e dissuasão.


MARIA LUIZA PIERRI

UFSCMUN, Universidade Federal de Santa Catarina, CSE - Trindade, Florianópolis/SC - 88040-380
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