DA ORIGEM DO PRECARIADO A SEUS NOVOS DESAFIOS

05/08/2021

TEMPO DE LEITURA: 20 MIN.

FLORIANÓPOLIS - É ao final do século XX que a economia brasileira passa por uma grande reestruturação; reestruturação essa que é pautada, sobretudo, pela influência regional-econômica estadunidense, encontrando na adoção dos sistemas produtivos taylorista e fordista sua principal base. Somado a isso, além das mudanças internas de âmbito financeiro ocorridas com a importação das práticas aliadas ao liberalismo econômico, encaminha-se também a integração da economia brasileira aos maiores centros capitalistas mundiais. Essa aproximação, porém, conta com uma série de características prejudiciais à economia do país. A principal delas é exposta por Braga (2012, p. 229) ao afirmar que:

[...] a tardia integração da estrutura social brasileira à mundialização do capital e ao neoliberalismo serviu para consolidar a dominância daqueles capitais internacionais liberados pela secular tendência à queda da taxa de lucros sobre setores não produtivos da economia nacional, tais como, o setor bancário e as telecomunicações.

Ou seja, é através dessa integração econômica defendida, sobretudo, pelas potências imperialistas, que ocorre o desequilíbrio na balança de poderes. Na relação entre os grandes centros capitalistas e países dependentes, os primeiros contam sempre com mecanismos mais desenvolvidos para a manutenção dos laços de exploração. Atuam em favor disso: a discrepância tecnológica e/ou técnica entre os países, apropriação e dominação dos mercados consumidores, repressão dos movimentos revolucionários, etc. Nesse sentido, a expansão capitalista dos segundos é subordinada aos interesses - e até a permissão - dos primeiros (MARINI, 2013).

No ciclo de exploração, que deriva desse fenômeno, é possível inferir que um dos eventos responsáveis por romper com a manutenção do domínio da burguesia sobre a força trabalhadora, a diminuição das desigualdades, representa para as classes aliadas aos desejos imperialistas um grande risco à manutenção de seu domínio. Sendo assim, na origem da supressão de políticas capazes de reverter - ou pelo menos auxiliar - o proletariado, ocorre a formação de uma nova modalidade de exploração: o precariado (BRAGA, 2012).

O precariado

As consequências negativas provenientes da invasão do capital estrangeiro sobre o território nacional, fenômeno que foi intensificado no período da ditadura militar, recaem em grande medida sobre o trabalhador - principalmente o rural. Por isso, durante sua recapitulação, Braga (2012) demonstra que em busca de melhores condições econômicas e sociais, o trabalhador do campo parte rumo ao ambiente metropolitano para integrar-se ao ambiente fabril. Sendo assim, a origem desse proletariado precarizado - outra nomenclatura utilizada para referir-se ao 'precariado' - ocorre na incapacidade do novo setor industrial em absorver a maioria do contingente de indivíduos provenientes do campo que tentam integrarem-se ao ambiente fabril que predominava em algumas regiões do país, como São Paulo.

A exportação da tecnologia que compõe o maquinário do ambiente fabril brasileiro é mais uma das práticas utilizadas pelas grandes potências para manutenção dessa situação de submissão econômica. A cooperação antagônica - conceito cunhado pelo teórico marxista August Thalheimer - expõe a impossibilidade de cooperação harmônica entre as economias imperialistas e os setores da burguesia nacional. Isso ocorre, pois, com a intensificação na criação das novas tecnologias e o estímulo crescente à obtenção de um ambiente produtivo de máximo rendimento - prática que sustenta a superexploração do proletariado - os países dominantes se veem obrigados a exportar suas tecnologias ultrapassadas aos países mantidos em fases anteriores de industrialização. Como exposto por Frank (1965, p. 228, tradução nossa): "Na América Latina, o monopólio internacional utiliza esse equipamento e tecnologia para competir com os rivais locais e eliminá-los ou absorvê-los", que continua de maneira irônica, "a isso se chama elevação do nível tecnológico da economia latino-americana e eliminação da ineficiência".

O precariado hoje

Ao contrário do que é debatido por alguns setores progressistas de esquerda e direita, o "precariado" apresenta-se já na sua origem como parte integrante do sistema capitalista. Ou seja, ele não surge por conta da flexibilização das leis trabalhistas ou pela inserção forçada de indivíduos em um mercado de trabalho que não oferece os meios básicos para sua sobrevivência. Portanto, o "precariado" é um projeto para manutenção da desigualdade social preconizada pela luta de classes. (Braga, 2012)

Essa parcela da população é obrigada a lidar com novas reestruturações produtivas que visam atender às demandas do sistema. Tais modificações abrangem tanto mudanças estruturais, quanto políticas e econômicas, envolvendo toda a sociedade. A flexibilidade dos direitos adquiridos historicamente pelos trabalhadores intenciona proporcionar uma maior agilidade para os empregadores no momento do contrato ou da dispensa, além de um menor gasto com os encargos trabalhistas.

Porém, tal processo de reordenamento do capital intensifica a exploração da força de trabalho e vitimiza essa mesma parcela, que se encontra em um contexto muito mais suscetível a sofrer os danos gerados por essas transformações. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2016), o trabalho informal era a principal ocupação de mais de 40% da população em 21 estados. Ademais, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE (2020b), 17% dos 23,8 milhões de autônomos do país declararam os aplicativos (principalmente Uber, iFood e Rappi) como principal fonte de renda - ou seja, 3,8 milhões de pessoas.

As implicações de uma economia dependente

A mesma falta de integração entre a massa migrante, que se materializa em 'precariado', e o ambiente fabril, é também uma das responsáveis pelo fenômeno do aumento da informalidade no país. Isso ocorre, pois a criação de um massivo contingente populacional desempregado (exército de reserva) obriga os indivíduos à sua inserção no mercado de trabalho sob "condições flexíveis" - denominação empregada pelos liberais. O termo, porém, é utilizado na tentativa de esconder o caráter desumano da ocupação informal que mina os direitos do trabalhador em prol do maior rendimento (MARINI, 2013; MARX, 2011).

É nesse mesmo contexto sócio-econômico que o setor de serviços no Brasil, em especial o setor de teleoperadoras, contempla um crescimento vertiginoso. Cabe ressaltar, nesse momento, que a invasão tecnológica pretendida pelos países centrais sobre os periféricos não limita-se ao maquinário considerado pesado, ou seja, aquele utilizado no setor automobilístico, agropecuário ou da construção civil, por exemplo. Isso ocorre, pois, quando não controlam de forma direta os meios de produção, os grandes capitalistas dos países centrais visam controlar os sistemas integrados a eles - como distribuidoras e bancos. A evasão do capital interno e, sobretudo, a incorporação econômica das empresas nacionais por parte daquelas gigantes no sistema capitalista através do sufocamento das mesmas, são fatores que aprofundam a manutenção do ciclo exploratório do capitalismo que dá origem ao precariado (FRANK, 2015).

O "desafio" empresário

Utilizando-se de características da economia brasileira, como sua tardia integração ao mercado financeiro mundial, os setores liberais - comumente influenciados pelas políticas dos países capitalistas centrais - argumentam que para um melhor (e mais rápido) desenvolvimento da economia, necessário para compensar o atraso do desenvolvimento capitalista no país, seria preciso suprimir algumas barreiras que o impedem. A situação é explorada por Sérgio Martins ao constatar que:

uma máquina faz o serviço de vários trabalhadores ao mesmo tempo. Não reclama, não fica doente nem falta, trabalha no frio ou no calor, no escuro ou no claro, etc. Com a automação, são necessários menos trabalhadores para fazer as mesmas tarefas anteriormente desenvolvidas (MARTINS, 2002, p. 44).

A globalização faz com que haja uma intensificação dos conflitos no âmbito econômico entre os países centrais e os principais agentes econômicos do sistema, por isso, os investimentos são direcionados para locais que possuem condições capazes de cobrir as despesas e gerar a maior quantidade de lucro possível - mão de obra barata e leis fiscais frágeis, por exemplo -, mesmo que isso signifique tirar a dignidade das pessoas explorando-as (GHISLENI, 2006, p. 7). Um reflexo dessa realidade é evidenciado em uma pesquisa realizada em 2016 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em parceria com a Fundação Walk Free, expondo a realidade de mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo que se encontravam em condições de trabalho análogas à escravidão.

A idealização meritocrática que impregna o discurso liberal na discussão sobre a flexibilização da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) serve apenas para ocultar  a  real  intenção de seus defensores: a máxima captação do lucro, fato que re-


-presenta, para o trabalhador, a supressão de direitos como o seguro desemprego, a licença maternidade, assistência médica - algumas das conquistas dos movimentos sociais comandados pelas camadas populares (GONÇALVES, 2002, p. 9).

A naturalização do discurso neoliberal apoiado no modo de produção capitalista, isso é, encarar como inerentes ao corpo social e à história do desenvolvimento econômico as características desse sistema atua como um sustentáculo para o fomento do conformismo proletário. Ou, como expõem Cavalcanti e Venerio (2017):

Tal cenário torna viável a consideração de que o Brasil configura uma espécie de 'Estado Liberal' à moda antiga, tendo em conta a preocupação com a iniciativa privada e a pouca atenção dispensada às parcelas mais pobres da população (CAVALCANTI e VENERIO, 2017, p. 158).

Em 2018, após uma série de reuniões com representantes do setor produtivo, o atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, afirmou: "Eles têm dito, não sou eu, o trabalhador vai ter que decidir, um pouquinho menos de direitos e emprego ou todos os direitos e desemprego" ('HOJE..., 2018). Apoiado de forma massiva pelo setor empresarial em sua eleição, o chefe do executivo apoia-se em um discurso dicotômico acatado por grande parte dos liberais no país. A tese é de que o Brasil funciona como uma grande empresa e, consequentemente, o trato com este deve assemelhar-se com a lógica do mercado.

As apostas no estabelecimento de uma legislação menos incisiva, utilizando como argumento a suposta melhoria nos índices de ocupação e, teoricamente, nas condições de vida do precariado não são políticas inéditas, mas sim ferramentas constantemente defendidas por uma classe dominante - a qual a superexploração do proletariado interessa. O discurso levado adiante considera que o trabalhador deveria simplesmente aceitar o fatalismo de que um contrato empregatício, ainda que desfavoreça o proletariado, supostamente, é melhor que emprego nenhum.

Entretanto, há controvérsias sobre a conexão direta entre flexibilização e o aumento no número de empregos. A reforma trabalhista aprovada em 2017 pelo governo de Michel Temer, por exemplo, modificou cerca de 200 pontos na CLT e estimou a criação de 2 milhões de cargos trabalhistas nos 24 meses seguintes. O que observou-se, contudo, que no primeiro ano foram empregadas apenas 372 mil, menos da metade esperada para o período equivalente. A principal ferramenta argumentativa para a precarização da legislação trabalhista e das condições do proletariado não se sustenta com os dados (GUIMARÃES, 2018).

A crise sanitária, o precariado e a flexibilização

Impactos sociais, políticos e econômicos, intensificados pela pandemia da COVID-19, fazem que a classe trabalhadora em situação mais precarizada, principalmente nos serviços terceirizados ou mercado informal, se depare com os desafios de manter uma mínima qualidade de vida em meio à crise sanitária dentro de um país cujo rumo econômico é, na teoria, o neoliberal. "Desemprego, perda da renda monetária e empobrecimento das famílias" são condições hoje enfrentadas pelo proletariado de modo mais intenso. Frente tal conjuntura, algumas medidas alinhadas ao modelo econômico keynesiano foram, não obstante sua ideologia econômica, adotadas pelo governo - como é o caso do auxílio emergencial (GOULARTI, 2020, on-line; CUCOLO, 2020).

Sancionado em abril, teve como objetivo a concessão de cinco parcelas de R$600 e quatro de R$300 para microempreendedores individuais, autônomos e trabalhadores informais não beneficiários do Governo Federal (a exceção é o 'Bolsa Família') e contribuintes individuais do INSS. A ideia era a de "assegurar uma renda mínima aos brasileiros em situação mais vulnerável", de acordo com o Ministério da Cidadania (2020, on-line), uma meta tão importante quanto revelam os números: uma pesquisa do Datafolha revela que, em dezembro do ano passado, 36% das famílias que recebiam o auxílio, dependiam unicamente dele para a composição de sua renda, em comparação a 44% no mês de agosto (CUCOLO, 2020).

Com o fim do benefício, a população que mais sofre impactos vê o aumento da fragilização do seu cenário. Estima-se que a extrema pobreza (renda diária inferior a US$1,90) alcance cerca de 10 a 15% da população em 2021, como diz Daniel Duque, economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (BARBOSA; SOUZA; PAUXIS, 2020). Constata-se também que, já em 2019, 41,6% dos trabalhadores se encontravam em situação informal, número que aumentou durante a pandemia. Além disso, o desemprego chegou a 14,6% no terceiro trimestre do ano passado (IBGE, 2020a). Ainda que a esperança de uma vacina e do fim do período de quarentena já possa ser uma realidade palpável para alguns brasileiros, a condição imediata dos trabalhadores que compõem o precariado não sofrerá grandes mudanças.

Dentro desse mesmo cenário, o ministro da economia, Paulo Guedes, defende a flexibilização da legislação trabalhista para beneficiar o que chama de "população de vulneráveis", ou seja, a massa de pessoas desempregadas ou em situação trabalhista frágil (PUPO, 2020, on-line). De fato, durante a pandemia foram aprovadas ações emergenciais como as MPs 927 e 936 que permitem - entre outros procedimentos - a redução de 70% na jornada de trabalho com contrapartida de recursos da União para reposição salarial, adiamento do pagamento do mês de férias e também de um terço da remuneração até a quitação do 13.º salário. O saldo resultante para os cofres industriais já foi de aproximadamente 180 bilhões de reais (WIZIACK; PUPO; FABRINI, 2020).

A ideia era de que essas medidas servissem como um amparo em virtude da crise sanitária, porém setores do agronegócio, serviços e indústria pretendem defender a sua continuação não apenas no momento imediato pós-pandemia, mas também como parte da futura realidade - ação que abriria portas para a regulamentação e ampliação das flexibilizações no futuro. Enquanto isso, os sindicatos - que sofrem com a pressão exercida pelas novas medidas - enfrentam uma faca de dois gumes ao optarem por tais concessões. Por um lado, a negociação que ocorre entre o empresariado e o governo promete garantir a manutenção dos empregos no curto prazo. Porém, na realidade, a implementação dessas determinações visa nada mais do que a intensificação da situação precária vivida pelo proletariado (WIZIACK; PUPO; FABRINI, 2020).

Já em março de 2021, se observa a agravação do contexto de pandemia pelo país com o colapso de vários sistemas regionais de saúde pública e privada. A economia brasileira, que apresentou um déficit de 4,1% no PIB de 2020, o maior desde a década de 1990, não demonstra sinais satisfatórios de recuperação, apesar das tentativas de flexibilização, tanto das medidas de restrição sanitária quanto das leis trabalhistas (ALVARENGA; SILVEIRA, 2021). A maior parcela de queda se deu no consumo familiar e o Congresso Nacional, em meio à crise de alta gravidade do cenário atual, estabelece uma PEC para a implementação de um novo auxílio emergencial, com um limite de gastos de R$44 bilhões (CAPPELLI, 2021). Segundo depoimentos do ministro da economia, menos pessoas receberão o benefício, e os valores oferecidos serão inferiores ao do primeiro auxílio.

O que se percebe, é que a recusa governamental ao lockdown nacional e a medidas mais efetivas de proteção ao trabalhador são tópicos ainda existentes, elevando a incerteza e calamidades do precariado. Ao mesmo tempo, permanece o plano econômico liberalizador, enquanto as perspectivas desastrosas para as classes menos favorecidas também perduram, a exemplo das previsões de aumento da inflação, desemprego e endividamento público (ALVARENGA; SILVEIRA, 2021).

Ao fim, nos é colocada uma questão que envolve simultaneamente a flexibilização das leis, a precarização do trabalho e a demanda por mão de obra. A história recente mostra uma visível ligação entre as duas primeiras, ao passo que a última parece ser mais dependente das conjunturas econômicas do que as negociações entre instituições.Tendo em vista as reflexões propostas, observamos que a vigente ideologia dos setores decisórios para a economia do país é fruto da realidade sistemática de uma nação dependente. Para a sustentação do modo de produção atual e do status quo da burguesia, que se entrelaça com o capital estrangeiro ao mesmo tempo em que este lhe limita a autonomia e desenvolvimento próprio, surge a tendência de reduzir o leque de direitos garantidos na legislação trabalhista, flexibilizando-a ao máximo. Como elucidado, esse processo intensifica a precarização da classe trabalhadora, cuja condição de exploração já antes existente é a premissa do sistema capitalista.

Contudo, o que de fato ocorre é a apresentação de políticas neoliberais como solução para crises empregatícias, que atingem em especial o precariado, população que atua como exército de reserva no meio urbano e como mão de obra nos serviços informais. As falas, recorrentes, são as que priorizam a ocupação em detrimento de condições dignas de trabalho, embora a história prove que a inutilização das leis trabalhistas não cumpre nem ao menos com o que se espera da promessa de criação de empregos.

Agora, ainda enfrentando a crise sanitária que lança ainda mais indivíduos ao precariado, a ofensiva de flexibilização retorna transvestida em um discurso que prega melhorias sociais, mas, em realidade, atua de modo a estreitar os laços de controle sobre o proletariado, restringindo sua capacidade de barganha e seus direitos em profissão.


LARA SOARES FURLAN

MARIA LUIZA PIERRI

MATHEUS DA COSTA MARTINS

UFSCMUN, Universidade Federal de Santa Catarina, CSE - Trindade, Florianópolis/SC - 88040-380
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